terça-feira, 18 de novembro de 2008

House em Havana

O diretor cubano Tomás Piard fala de seu filme "o viajante imóvel", sobre o romance "Paradiso", de Lezama Lima, e diz que a juventude "revolucionária" do país assiste aos enlatados norte-americanos

Cuba não tem uma economia sólida; nos acostumamos a ter o Estado nos provendo e perdemos o espírito do que é trabalho
A transição em Cuba -ou a ausência dela- sob o olhar do cineasta cubano Tomás Piard, 60, é elucidativa. Piard lançou em Cuba seu novo filme, "El Viajero Inmóvil" (O Viajante Imóvel), sobre a vida de José Lezama Lima, autor de "Paradiso" (1966), um dos principais romances do século 20.
O filme, como Piard esclarece, não é nenhuma pretensa adaptação do romance de Lezama, mas sim uma homenagem a ele -a quem o cineasta chama de "pai espiritual". Amigos? Não. Tomás Piard se encontrou com Lezama uma única vez, numa exibição de cinema em Havana, quando era estudante. Ambos iriam assistir a "As Noites de Cabíria" (1957), de Federico Fellini. Talvez a duradoura identificação de Piard com a história de Lezama -que nunca deixou a ilha- seja reflexo de uma certa simbiose com a história da Cuba que "transcende", "e não a Cuba que vendem aos turistas", explica o diretor cubano.

Após uma espécie de "exílio" cultural na Galícia por três anos, negociado pelo governo cubano após ter feito um filme considerado "imoral", Piard considera que lançar seu último filme em Londres, patrocinado pelo Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (Icaic), é um claro sinal dos tão esperados novos tempos em Cuba.

O país que os turistas não vêem tem uma péssima qualidade educacional e um sistema de saúde flagrantemente falido -os dois pilares da Revolução de 1959. Vive entre a divergência praticamente diária e explícita entre Fidel e Raúl Castro. Alimenta uma geração de jovens com seriados norte-americanos como "Lost", "House" e "CSI Miami". É o país com uma massa de revolucionários ressentidos, mas ao mesmo tempo incapazes de criticar abertamente Fidel Castro.

Para Piard, um revolucionário, Fidel cometeu "erros", mas com as melhores intenções. Um marciano, diz ter absoluta certeza de que "a Aids é uma doença fabricada em laboratório pelos EUA". Um transcendente, que se emociona com a eleição de Barack Obama e, sobretudo, por tê-la assistido longe do controle midiático de Cuba. Um artista assustado com a globalização e que quase decreta o fim do cinema.

Folha: Em Cuba não se pode ver cinema latino-americano?
Piard: Cuba não tem dinheiro para comprar filmes. Em Cuba, todos os filmes são em DVD. Com os países com os quais temos relações diplomáticas e comerciais podemos tentar o direito de exibição. Na TV, às quartas-feiras, passam-se filmes latino-americanos. Mas não se estréiam filmes estrangeiros normalmente em Cuba porque temos que pagar os direitos e, quase sempre, os direitos são norte-americanos. A televisão de Cuba é norte-americana, porque o resto da programação da TV é norte-americana. É um paradoxo, mas fazemos isso porque não temos produção nacional suficiente para preencher todo o espaço da programação. É contraditório, porque os jovens "revolucionários", por exemplo, estão assistindo aos filmes norte-americanos. E eles também assistem a "Lost", "House", "CSI", todos os seriados norte-americanos recentes. As produções norte-americanas são todas DVDs piratas.

Folha: O momento é novo em Cuba e agora há várias expectativas em relação à política externa norte-americana, com a eleição de Barack Obama. O sr. vê alguma conexão entre esse momento cubano e a eleição norte-americana?
Piard: Não creio que possa ser feita uma conexão. Em Cuba são feitos esforços; esse filme, por exemplo, é um esforço [de transição], mas a vida política, econômica e social cubana está toda paralisada. Fidel Castro não é o presidente, mas está presidente. Há coisas que Raúl Castro tenta fazer para mudar a situação de Cuba, mas Fidel, que publica diariamente suas reflexões, às vezes o contradiz. O país foi vítima de dois furacões enormes. O país está arrasado, destruído. Casas, indústrias e escolas foram destruídas. E Cuba não tem uma economia sólida. Não há produção. Nós nos acostumamos a ter o Estado nos provendo e, por isso, perdemos o espírito do que é o trabalho. E só o trabalho pode criar riquezas e dar estabilidade econômica.
Folha: Como o sr. aspira a ter liberdade de criação e produção num país que não é livre?

Piard: Pelas metáforas. A diferença é que eu, agora, não toco na realidade diretamente. Por exemplo, um dos temas que mais me interessam é o da família, da desintegração da família enquanto um núcleo essencial da sociedade. Em Cuba, todas as famílias estão desgarradas. Há pessoas que foram para outros países ou, mesmo na ilha, muitos membros vivem em outras Províncias. Neste meu último filme, por exemplo, há um símbolo muito importante do que é a agregação da família: a comida, o jantar, a mesa. Ou seja, a família se senta junta para comer. Quando isso acontece, existe a família.

Folha: O que achou da vitória de Barack Obama nos Estados Unidos?
Piard: Me emocionei muito. E me emocionei sobretudo por poder tê-la visto fora de Cuba, porque lá os meios de comunicação manipulam tudo.

fonte: Caderno Mais

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