domingo, 23 de novembro de 2008

Sexo à flor da batina


Estudo de Kenneth Serbin desvenda a conduta de padres e seminaristas no Brasil do regime militar

A quem interessa a vida sexual dos padres no Brasil?

O historiador americano Kenneth Serbin interessou-se a tal ponto pelo tema que escreveu um livro de 448 páginas ["Padres, Celibato e Conflito Social", trad. Laura Teixeira Motta, Cia. das Letras, R$ 65].

Como estudioso voltado à reconstituição histórica da individualidade de fatos carregados de significação cultural, Serbin esteve por diversas vezes no Brasil, entre 1986 e 2002, para compor sua longa narrativa historiográfica sobre a conduta de padres e seminaristas no Brasil dos anos de chumbo.Visitou dezenas de seminários e institutos de teologia, coletando de Norte a Sul documentos pertinentes: impressos, fonográficos, manuscritos, iconográficos.

Entrevistou um grande número de bispos, padres, ex-padres, ex-seminaristas, freiras, leigos de ambos os sexos.Ao lado de seus testemunhos de autor a respeito das pessoas que conheceu e dos casos mais significativos que presenciou como observador, Serbin provocou duas centenas de depoimentos (retrospectivos, na maior parte, que é como os faz vir à tona o historiador), alguns simplesmente esplêndidos, sobre a ignota vida sexual de padres e seminaristas nos conturbados anos de 1960 e 70.

Crise institucional
O cerne do relato é fornecido pelo agravamento, no país, da crise institucional pela qual naqueles anos passava a igreja católica no mundo.

Agravamento provocado aqui pela "publicização" de uma crise interna à instituição, decorrente da crescente insolência com que padres e seminaristas rebeldes passavam a recusar, não só na teoria como na prática, a obrigatoriedade do celibato sacerdotal.

Sexo à flor da pele, ousadias na ponta da língua, essa foi uma das crises mais delicadas dentre as tantas por que passou o catolicismo romano no decorrer da segunda metade do século 20. Talvez a mais difícil de investigar objetivamente "sin perder la ternura", como Serbin consegue fazer.

Documenta com grande veracidade e discrição não menor as descobertas que pôde fazer nesse terreno pouco iluminado da vida clerical, que ele chamou de "carências do coração".

"Needs of the Heart" [Necessidades do Coração] é o título original do livro. Locução como essa, tão condolente, Serbin foi pescá-la em obra do historiador da psicanálise Peter Gay, que por sua vez a apanhara do grande historiador Jacques le Goff, este, portanto, o verdadeiro autor do belo título que Serbin deu a seu livro.
Só que a tradução brasileira, por inexplicável capricho, o descartou. Pena. O delicioso título em inglês, que remete a corações humanos aos quais faz falta o necessário, virou em português esta coisa gélida e mal acabada -"Padres, Celibato e Conflito Social"- que está mais para subtítulo de tese que para título de livro.

Estudo inesperadamente sedutor, cujo conteúdo cresce em interesse à medida que o leitor se dá conta de que, nos relatos a um só tempo indiscretos e elegantes de ações e atitudes aparentemente imorais dos clérigos no Brasil dos anos 60 e 70, o que Serbin registrou na verdade foi um momento histórico raro de aporte de tensão moral modernizadora à velha cultura católica "à brasileira".

Ao misturar em pequenas doses precaução e recato com admiração sincera e simpatia -não só pelos personagens mais ativos dessa história de mudança religiosa no país, mas também por suas causas, progressistas em diferentes planos-, o livro consegue devolver merecido destaque não à causa macrossocial da justiça social, mas a esta outra, tão vital e libertadora quanto: a causa microssocial da subjetividade sexualizada.

Pode desapontar alguns leitores, entre eles eu, o fato de que, mesmo tentando como historiador abrir ao máximo as cortinas desse passado eclesiástico recente, ao se colocar como um católico progressista que continua fiel à sua igreja do coração, Serbin não consiga senão entreabri-las.Mas só isso já representa muito, e o resultado, desconcertante em parte, é dos mais interessantes.

Antônio Flávio Pierucci é professor de sociologia na USP e autor de "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34), entre outros livros.

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